domingo, 14 de julho de 2013

Homossexualidade não é doença, não pode ser curada





Alvo de protestos em cartazes nas manifestações recentes que marcaram  todo o Brasil e motivo de piada nas redes sociais, o projeto de decreto legislativo que ficou conhecido como ‘cura gay’, retirado de tramitação recentemente na Câmara dos Deputados, também foi alvo de contestações por profissionais da área de saúde. Planejado para extinguir dois artigos da Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia, que desde março de 1999 tinha como resolvida a não caracterização da homossexualidade como doença, o projeto já havia sido aprovado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara no último dia 18 de junho.
Professora de psicologia da sexualidade há mais de 20 anos, pesquisadora da Universidade da Amazônia (Unama) e integrante do Conselho Regional de Psicologia, a psicóloga Sandra Lobato vê o projeto proposto pelo deputado João Campos (PSDB-GO) como o resultado de uma onda de fundamentalismo – sistema que se apresenta como portador exclusivo da verdade - por parte de alguns políticos.
Independente da retirada do projeto de pauta, condição que só permite a apresentação de um novo projeto com o mesmo contexto em 2014, para a psicóloga, a derrubada de parte da resolução não afetaria, de qualquer maneira, a prática de muitos profissionais da área. Confira entrevista cedida ao DIÁRIO:

P: Passamos, antes do arquivamento, pela polêmica da aprovação pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados desse projeto que ficou conhecido como ‘cura gay’. Porém, já havia uma resolução do Conselho Federal de Psicologia desde 1999 sobre o assunto. Como você vê a retomada desse assunto que, para a categoria, já era tido como algo resolvido?

R: Essa é a primeira resolução de 1999 que, basicamente, veio para balizar a nossa prática. O absurdo é ver políticos querendo mudar isso. O que estavam tentando fazer era intervir diretamente em uma prática de uma categoria que desde 1999 já tem uma postura ética diante dessa questão. No final da década de 70, a homossexualidade foi despatologizada, a homossexualidade não é doença. Então, se não é doença, não cabe nenhuma perspectiva de tratamento, de cura, de nada disso. A gente vê isso, inclusive, como uma interferência na nossa prática profissional e isso vem com toda uma onda de fundamentalismo que está sendo colocada já há algum tempo em relação à homossexualidade, à diversidade, à pluralidade sexual. O que eles querem é tirar dois artigos da nossa resolução e esses dois são exatamente os que sustentam a forma como atuamos junto aos indivíduos homossexuais e também nos posicionamos publicamente sobre o assunto. No momento em que eles mexem nisso, você pode pensar que psicólogos não alinhados com essa resolução, que estejam fora daquilo que nós, psicólogos, devemos fazer, podem, de repente, fazer apologia a uma cura. Imagina que com essa insanidade [o projeto] a pessoa vá colocar uma placa em seu consultório dizendo ‘curo homossexuais’. Será que a gente vai ajudar dando esse tipo de opção que não existe? Não tem cura. É uma orientação sexual, é algo que acontece no processo de socialização e de subjetivação daquele indivíduo. Então não é algo a ser curado. É algo que é constituinte daquele indivíduo. Como eu vou prometer uma coisa que não existe, que é impossível? Então temos que ter muita seriedade para pensar o que é que eu posso, efetivamente, disponibilizar enquanto possibilidade de vida menos sofrida, mais feliz, com possibilidade de aceitação. Muitas vezes o próprio homossexual, em um primeiro momento, tem dificuldade porque há uma questão social muito forte, e ele acaba tendo dificuldade de se aceitar. Nós vamos muito mais trabalhar no sentido de essa pessoa aceitar os seus desejos e a sua orientação sexual e poder viver plenamente as suas possibilidades amorosas do que propor que a pessoa deixe de ser aquilo que ela é. Isso não cabe de forma alguma. É completamente inadequado. Ao mesmo tempo em que você tem a sociedade aceitando muito mais essas questões, aceitando muito mais as orientações múltiplas que as pessoas possam vir a ter, você tem lá um grupo de fundamentalistas querendo que as pessoas deixem de ser gays. Ninguém deixa de ser gay, isso não existe. E a patologização, quando ela já foi despatologizada, é a interferência em uma profissão. Só nós, psicólogos, podemos interferir naquilo que é a nossa prática.

P: Você acredita que, diante disso, a interferência era muito mais balizada em opiniões do que no que a psicologia já aponta enquanto ciência?

R: É completamente contrário a tudo aquilo que cientificamente já se tem, não só na psicologia, mas em diversas áreas do conhecimento. Desde o final da década de 70 a homossexualidade não é considerada mais doença. Ela não está em nenhum dos manuais que, de alguma forma, vão catalogando as doenças. A ciência já disse que não é doença. Então, como é que pode um grupo de políticos achar que eles vão designar essa categoria a patologizar algo que já foi cientificamente despatologizado? Acho isso de um autoritarismo absurdo. E, veja bem, isso estava sendo discutindo dentro da Comissão de Direitos Humanos. Como pode se discutir isso dentro dessa comissão, se isso é algo que vai completamente contra aquilo que o indivíduo tem como direito fundamental, de ser aquilo que ele é, de amar a quem ele quiser?

P: Você acredita que essa possibilidade de alguns profissionais oferecerem uma cura para a homossexualidade poderia acabar gerando um prejuízo psicológico maior para o indivíduo que ainda está tentando se entender e se encontrar?

R: Muitas vezes, um jovem, por exemplo, que a família ainda não consegue aceitar sua situação e que, de alguma forma, sofre bullying em alguns espaços sociais, vai estar muito angustiado. Ele precisa de ajuda para enfrentar essa travessia até conseguir se aceitar e dar conta de si mesmo. Nesse caso, ele precisa, realmente, de alguém ao lado dele no sentido de fazer com que ele entenda o que está acontecendo com ele e que possa enfrentar as adversidades do preconceito social, de tudo aquilo que ainda a sociedade cobra. Tem uma normopatia, uma normatividade de como devemos ser. Então essa pessoa precisa de ajuda, mas não para deixar de ser homossexual. Se eu digo que está errado ser homossexual, eu não vou estar ajudando essa pessoa em nada. Pelo contrário, vou fazer com que essa pessoa se discrimine e tenha o auto preconceito acirrado. Isso é desumano, é contra todos os direitos fundamentais do ser humano, então, claro que isso pode vir a prejudicar aquela pessoa. Isso vai colocar aquela pessoa em mais sofrimento ainda e isso é tudo que a gente não quer. O que queremos é tirá-la dessa condição de sofrimento, ela podendo elaborar a sua condição, o seu desejo, aquilo que ela quer da vida. Essas posturas fundamentalistas, em qualquer área, são sempre muito perigosas. Tudo aquilo que é absolutamente extremado e sem bom senso no sentido de se discutir o que a ciência está dizendo, o que a vida social está me mostrando, o que as pessoas que têm essa orientação sexual estão vivendo, é perigoso.
P: Você acredita que a sexualidade, de uma forma mais ampla, ainda é muito estigmatizada, fazendo com que algumas pessoas acreditem que alguns comportamentos são tidos como doença, como no caso da homossexualidade, por exemplo?

R: Parece que, na nossa sociedade, a sexualidade é uma coisa muito resolvida, mas, na vida privada, as pessoas ainda enfrentam muitas dificuldades em viver plenamente a sua sexualidade. A sexualidade remete a um universo simbólico, a como eu apreendi, como eu subjetivei aquilo que a cultura da sociedade na qual eu vivo me disse sobre aquilo. Então, temos ainda contradições muito grandes nessa área. Aí você tem pessoas que aparentemente estão muito bem resolvidas, mas lá na sua vida privada elas têm uma série de dificuldades, uma série de problemas que, muitas vezes, são vividos com muito sofrimento. Você tem essa contradição, parece que é uma sociedade que fala muito disso, mas ainda é uma sociedade que reprime muito e que as pessoas ainda são muito reprimidas, ainda se julgam muito e são julgadas. Acredito que isso influencie na vivência da nossa sexualidade, seja ela heterossexual, homossexual, seja bissexual, seja sem classificação. No exercício da nossa sexualidade, interfere, sem dúvida. Nós vivemos ainda uma sociedade com muitos tabus, com muitos preconceitos. As pessoas são, literalmente e em algum momento, julgadas pelas suas práticas.
P: Você falou sobre a importância da pessoa que é homossexual ter esse acompanhamento para conseguir se aceitar. Você acredita que as pessoas ainda confundem o acompanhamento para a pessoa entender o que está se passando com ela com esse que seria para a pessoa deixar de ser homossexual?

R: Nem toda pessoa que é homossexual precisa de acompanhamento. Tem pessoas que descobrem a sua sexualidade e têm a sua vivência onde não são tão discriminados, têm uma família que compreende mais essa questão e, não necessariamente, essas pessoas vão ter problemas. Elas vão ter os mesmos problemas de relacionamento que os heterossexuais têm, as mesmas questões relacionadas a ciúme, posse, relacionadas a qualquer relacionamento amoroso, independente de qual é a orientação sexual. A pessoa não precisa, necessariamente, ao se descobrir homossexual, ir ao psicólogo. De repente a pessoa descobre sua homossexualidade e vive bem com isso. Agora, de forma alguma se deve confundir isso com uma cura. As pessoas nos procuram, em algum momento, porque têm problemas de aceitação, às vezes na escola, no trabalho e isso acaba se refletindo sobre ela numa condição de sofrimento, mas não porque ela queira deixar de ser. As pessoas não querem deixar de viver. Na verdade, as pessoas buscam alternativas de viver com menos sansão social, com menos preconceito. Imagina o sofrimento de você sentir de um jeito e ter que fazer de conta que sente de outro. A homossexualidade é uma expressão da sexualidade que pode se manifestar em vários momentos da vida. Pode se manifestar no início da adolescência, na terceira idade, na idade adulta, em qualquer momento da vida do indivíduo. Ela é uma forma de manifestação de afeto. Não tem idade para descobrir e viver.

P: A aprovação desse projeto e a derrubada de parte dessa resolução poderia ser um retrocesso?

R: A nossa postura, enquanto psicólogos, de forma alguma, mudaria a partir de uma atrocidade desta natureza. Nós, psicólogos, continuaríamos tendo a mesma postura, de respeitar sempre e entender que cada ser humano é diferente do outro e que a nossa prática vai ser sempre ao encontro aos direitos humanos. Pode passar a atrocidade que passar no Congresso Nacional: nós vamos continuar considerando, e a ciência considera isso, que a homossexualidade não é doença e que não existe cura. Isso não mudaria a nossa prática, mas, infelizmente, cria uma polêmica e, em algum momento, uma categoria fica exposta a uma situação dessa natureza. Eu, por exemplo, vou continuar dando a minha aula de psicologia da sexualidade falando sobre diversidade sexual, vou continuar atendendo os meus pacientes exatamente da mesma forma como faço hoje, à revelia do que a comissão dos direitos humanos desse país acha que deva ser, porque isso é um absurdo. Eles não representam o movimento social, está aí todo mundo nas ruas dizendo isso.
(Diário do Pará)

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